sábado, 13 de fevereiro de 2021

Roupeiro luso-brasileiro 🇵🇹🇧🇷

Esta noite acordei com um zum-zum-zum dentro do quarto. Como estava tudo escuro, não conseguia saber de quem eram nem de onde vinham as vozes. De modos que não me restou senão prestar atenção ao diálogo para tentar descobrir o que estava acontecendo. 

- Ô de ganga... calça de ganga, tás acordada? Tou a falar contigo. 
- Comigo? 
- Sim, contigo mesma, ou há mais alguma coisa aqui no armário que se pareça com uma calça de ganga? 
- Desculpa tuga, ainda não me acostumei com esse nome, eu sou um jeans brasileiro. 
- Pergunto se não tás cansada... 
- Can-sa-do! – interrompe, irritado – “o” jeans, é masculino, ok? 
- Tá béim, não precisas fazer gênero! Não tás cansade de ficar pendurade aqui sem poder ir a nenhum lado? – continuou a t-shuga (era uma t-shirt tuga). 
- Já me acostumei, no começo ele ainda me vestia para ir ao “super” como vcs dizem. Agora nem isso. 
Os tênis, com os atacadores soltos, resolveram meter o bico. 
 – Lembro bem, brasuca. Iamos os três, lembra? Eu, você e a t-shuga. Saudades de atravessar uma passadeira. Sonho quase todas as noites com aquela foto dos Beatles atravessando a Abbey Road. 
A camisa social, toda engomadinha, entra na conversa: 
– Já viram há quanto tempo o gajo não veste uma camisa? Fica o dia todo de fato de treino, peúgas e pantufas, parece um reformado. 
– Nem por isso – responde o agasalho verde e amarelo, sentindo-se citado –, no começo me usava mais, agora como não pode ir ao ginásio prefere um preto básico que anda por aí. Aliás, acho que são três, um pra ficar em casa, um pra caminhar e outro para ir à pastelaria ou ao mercado. Mas sempre acho que é um só, porque são idênticos. Tenho saudades das manifestações na Paulista, que no fim não serviram pra nada, é bom que se diga.
- Tás a reclamar do quê, ó brasuca? Queria que estivesses no meu lugar – disse o fato, único no armário com direito a cabide de madeira – Antes ainda íamos a um casamento ou a um velório qualquer, agora com isso da Covid morrem-se e nem ó enterro se pode ir. 
A camisola amarela da CBF, espremida no fundo da gaveta logo abaixo, não se contém: 
– Aí gente boa, vamo pará de falá de morte, que horrô! Tou aqui quietinha, mas tou ligada! Vamo falá de coisa boa, ano que vem tem copa do mundo! Huhúúú, vou ficar uns dois meses coladinha nele, sem saber o que é máquina de lavar hahahaha! 
O fato de banho que também não vê a água há muito tempo, mete-se na conversa: 
– Pois, agora que virou adepto do Benfica, acho que vai te trocar por uma camisola encarnada, aquela com o 7 do Cristiano Ronaldo às costas. 
A cueca, toda rendada e delicadinha, resolve protestar do seu cantinho: 
– Oiçam, podem ficar quietos, se faiz favor! Preciso descansar. Lembrem-se que eu fico a postos dia e noite, 24 sobre 24. 
 A ceroula não perde a chance: 
– Ao menos ficas em boa companhia...queria eu! 
Gargalhada geral, os cabides baloiçando de um lado para o outro e as portas do armário abrindo e fechando. 
Acendo a luz do abajur para ir à casa de banho. Tudo em volta silencia, não se ouve um pio. De repente um espirro em baixo da cama. 
 – Coitadinha das havaianas, dormiram outra vez fora do saco. Pegaram uma friagem, de certo.

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