segunda-feira, 28 de junho de 2021

O MEU NOVO AMIGO.

Quero apresentar-vos o meu mais novo amigo. O nome dele é Cláudio Amílcar Carneiro e tem noventa anos. Isso mesmo, 90. Onze livros escritos e publicados pela Chiado Books. O último deles, Contas da Minha Aldeia (em português do Brasil algo como Histórias da Minha Aldeia) publicado em 2020 em plena pandemia, com 595 páginas. É isso mesmo que você leu: 595 páginas, incluído o índice.
O meu novo amigo mora na Amadora, Lisboa, onde vive, escreve, lê e colabora em alguns jornais. Mas nasceu em Chacim, como eu. Conheci-o estava eu ainda no Brasil, num grupo de whatsapp que congrega filhos e amigos de Chacim, gente nascida e criada nessa linda aldeia de Trás-os-Montes, ao pé da Serra de Bornes, hoje imigrantes e expatriados espalhados pelo mundo mas que nunca deixam, sempre que podem, de voltar à terra. Porque de acordo com o meu novo amigo “o solo onde se nasce e cresce é um altar sagrado de constante e eterno chamamento!”

Quando me apresentei ao grupo “Olá, o meu nome é Cascão, sou filho do Adérito, ferrador, e da Carolina, nós morávamos na Feira..." ele imediatamente entrou na conversa: “Olha, eu conheci os teus pais. Vós tinheis um palheiro ao lado da minha casa, onde o teu pai guardava a palha e o feno. A tua mãe casou com o teu pai era já ele viúvo e tinha um filho do primeiro casamento, que foi pró Brasil. E tú tens uma irmã chamada Laura e de facto moráveis na Feira (o meu novo amigo é contra o novo acordo ortográfico), mas antes os teus pais moraram no Fundo da Vila..." E assim o meu amigo foi desfiando um rosário de fatos sobre a minha família e antepassados, que eu mesmo não conhecia em tanto detalhe.
A ciência precisava estudar a memória do meu amigo Cláudio, de 90 anos. Se lhe perguntarem sobre cada família, de uma ponta à outra da aldeia, ele dirá o nome dos avós, dos pais, o que faziam, se eram da terra ou de onde, quantos filhos tiveram, se dentro ou fora do casamento, se estão vivos ou não (aqui com alguma compreensível imprecisão), se imigraram, para onde foram e com que idade... Um fenômeno como eu nunca vi! O que o ajuda muito, imagino, na hora de escrever, porque o tema dos seus livros é um só, embora rico e variado. Cláudio escreve sobre o seu amor a Trás-os-Montes e ao Alto Douro, sobre as aldeias da região – que o seu conhecimento vai além de Chacim e inclui todas os sítios no entorno, nos quais tem muitos amigos e também os conhece e descreve em pormenores, bem como as histórias de suas gentes.

Quando cheguei a Lisboa e soube que ele morava aqui, dei um jeito de conhecê-lo pessoalmente. O que me disse, por e-mail, foi: "Ó Cascão, moro só, tenho noventa anos, já quase não saio. Terei todo o prazer em receber-te em minha casa. Não precisas marcar, vens, tocas, abro-te a porta, ofereço-te uns livros e segues o teu caminho". Ahhh, como se soubéssemos, ao cruzar o nosso caminho com o de alguém, se a pessoa vai simplesmente passar ou se vai ficar e se transformar em mais um grande amigo.

No dia combinado – não gosto de aparecer na casa de ninguém de surpresa – fui com a Rose e a Laura, minha irmã, até à casa do Cláudio. Encontramo-lo de pijama, mas muito bem disposto. E o que era uma visitinha rápida, transformou-se numa mais ou menos longa conversa, como se há muito nos conhecêssemos e fôssemos já grandes amigos. Falou-me de si, da sua vida em Chacim onde permaneceu até aos 24/25 anos a "repartir o tempo entre a guarda dos vitelos e outros trabalhos campestres" como assinala a sua mini biografia na orelha do livro e de onde saiu em 1955 para por-se a serviço do governo português em Goa na Índia, retornando a Chacim em 1957, ano em que nasci. Depois falou-nos da sua vinda para Lisboa a terminar os estudos e onde conheceu a sua amada mulher, falecida há quatro anos e que levou consigo um pedaço da alma do meu amigo. Ao final, aí sim, presenteou-me com alguns livros de sua autoria, o primeiro do quais "Vivências Inesquecíveis", uma autobiografia que devorei com toda a vontade porque fala a cem por cento da terra que nos viu nascer.
Na semana passada fizemos-lhe mais uma visita. Desta vez com o convite para que almoçasse conosco ali perto de sua casa, aonde pudesse ir sem muito esforço. Às 12, hora combinada, encontrei-o à nossa espera. Abriu a porta e eu, preocupado com suas eventuais limitações de mobilidade, ofereci-me para o ajudar a descer as escadas dos dois andares que levam ao rés de chão. Disse-me que não era preciso e começou a descer lépido e fagueiro atrás de mim. Ao ver que não se apoiava no corrimão, sugeri-lhe que o fizesse. "Não pego no corrimão", respondeu-me. Talvez para não se expor ao contato com o maldito vírus, pensei, embora já tenha levado as duas doses.

No restaurante tomou uma sopa que o garçom lhe trouxe sem a pedir. Depois escolheu o prato que veio acompanhado de um pequeno jarro de vinho tinto, que também não pediu. Percebi que, afora o prato, todas as suas demais preferências já eram de conhecimento do garçom, visto que é ali onde almoça todos os dias depois que a sua amada o deixou. Mas não pensem que o meu amigo vive só e abandonado, não. Além de muitos e bons amigos, tem uma filha em Lisboa e dois netos que, embora não vivam com ele, o mimam e paparicam.

Após a sobremesa, uma salada de frutas que também veio sem ser comandada, fomos até à sua casa onde me ofereceu e também se serviu de uma gostosa e autêntica bagaceira. "É digestivo" – afirmou. Mais um pouco de prosa e saí de lá com mais alguns exemplares do seu último livro, todos endereçados e autografados, com a missão de entregá-los um à professora das Escolas Antonio Maria da Costa, em Chacim, um ao padre Basileu Dos Anjos Pires destinado à biblioteca do Convento de Balsamão, outro para a biblioteca da Câmara de Macedo de Cavaleiros e mais uns a amigos a quem costuma presentear com as suas obras.

Eu e o meu novo amigo só lamentamos não ter-nos conhecido antes. Mas agradeço à vida por me permitir conviver com ele pelo tempo que ainda nos reste a ambos. Obrigado, meu novo velho amigo Cláudio Amílcar Carneiro. Minha vida enriqueceu-se com a tua amizade.