quinta-feira, 15 de outubro de 2020

OH! HOMEM, OH! MULHER, APRENDE A DANÇAR, SENÃO OS ANJOS LÁ NO CÉU NÃO SABERÃO O QUE FAZER CONTIGO” (Agostinus)

Quando você inicia sua carreira profissional, seja em que condições for, o talento, o esforço e a garra são determinantes. É preciso contar também com um pouco de sorte, claro. No entanto, o que pode fazer toda a diferença é quando a vida coloca no seu caminho uma pessoa que, além de te inspirar e servir de referência, acredita em você mais do que você mesmo. E é capaz de enxergar potencialidades que você desconhece. Devo muito do que sou e do que sei – não sobre publicidade e marketing, mas sobre ética, respeito, responsabilidade, honestidade, lealdade – a uma dessas pessoas, um anjo da guarda que Deus colocou a meu lado no primeiro emprego. Eu tinha quatorze anos. Era office-boy a serviço exclusivo do vice-presidente de operações das Páginas Amarelas (para quem não conheceu, foi o google do século passado). Ela era sua secretária executiva, minha chefe direta, portanto. Naquela época a aspiração de todos os office-boys era virar auxiliar de escritório, mudar de patamar, ganhar mais. E havia uma fila, por tempo de serviço. Enquanto esperávamos chegar a nossa vez íamos ganhando destreza nos tlec-tlec-tlec das máquinas de escrever, durante o tempo que sobrava do almoço ou entre um serviço de banco e outro. Eu até fiz um curso de datilografia enquanto aguardava chegar a minha vez. No entanto, o que eu curtia mesmo era passar meu tempo livre no departamento de arte da empresa. Um lugar cheio de cabeludos (inicio dos anos 70), pranchetas, réguas, esquadros, pincéis, guaches, canetinhas e blocos de papel. Era dali que saíam não somente os anúncios que recheavam as listas telefônicas, mas também as campanhas temáticas de promoção e incentivo que ajudavam a manter um clima permanente de fla-flu entre as equipes de vendas. Um dia ela me chamou e disse: “abriu uma vaga de auxiliar de escritório e, pela ordem, é a sua vez”. Depois de um breve silêncio, completou: “mas eu indiquei outra pessoa...”. E antes que eu pudesse me indignar: “você não ia ser feliz nessa função, quando surgir uma vaga no departamento de arte eu indico seu nome.” E foi assim que comecei a minha carreira. O nome dela era Nadir Mercedes Tiveron. Não tenho palavras para descrever sua generosidade, disciplina, senso de responsabilidade, eficiência, profissionalismo e tantas outras virtudes que praticava e naturalmente inspirava em todos que conviviam com ela. Foi a única pessoa que eu conheci na vida capaz de atender uma ligação internacional, fazer as anotações em taquigrafia, ao mesmo tempo que digitava uma correspondência em português e em seguida me passava instruções sobre um serviço qualquer enquanto continuava a digitar sem sequer olhar para o teclado da máquina de escrever. Nadir morava sozinha e quando saía era para ajudar alguém, para ir ao teatro ou a um show, fazer uma excursão ou visitar a família no interior. Era adepta da comida macrobiótica. Depois de se aposentar nas Páginas Amarelas, Nadir, que foi também madrinha do meu primeiro casamento, dedicou o resto da vida às danças circulares. Primeiro como praticante e entusiasta, depois como professora e facilitadora. Um universo em que era conhecida e chamada carinhosamente por todos de “Mama”. Não tinha facebook, mas o facebook está repleto de referências a ela. E não é para menos, a considerar o seu histórico e a quantidade de seguidores que curtiam e compartilhavam de sua postura e dos seus ensinamentos. Encontramo-nos diversas vezes ao longo da vida, sempre menos do que eu gostaria. De tempos em tempos sentia necessidade de vê-la, saber se estava bem, agradecer mais uma vez por tudo que fez por mim, seguramente sem imaginar o quanto os seus exemplos moldariam meu futuro. Ligava e nos encontrávamos. A última vez foi numa feira cigana em São Paulo. Cheguei a convidá-la também para promover um workshop de dança circular na sede de Cafh em São Paulo. Ontem, soube de sua morte. Tinha 89 anos. Dizem que saiu para visitar e ajudar uma sobrinha que estava hospitalizada e, apesar de todos as precauções que sempre tomava, acabou contraindo o coronavirus. Com os probleminhas naturais de saúde que já tinha por conta da idade, não resistiu. Ao mesmo tempo que bateu uma imensa saudade e um pouco de tristeza – não tanto por ela, Mama, mas por todos nós, seus filhos em alguma medida – bateu também uma grande certeza, a de que os anjos lá no céu vão saber exatamente o que fazer quando ela chegar: dançar, dançar e dançar. Vai Nadir querida, abre uma grande roda e mostra pra eles o que você aprendeu e ensinou às gentes daqui. (A título de registro: Nadir Mercedes Tiveron foi Secretária Executiva bilingue, professora de Pedagogia Waldorf, focalizadora de Danças Circulares desde 1997 com formação nos EUA (LA), Stockton (Universidade do Pacífico) e com cursos na Grécia, Turquia, Bulgária, Escócia (Findhorn), México e Córdoba/AR. Em 2007 foi convidada do Prof. Yves Moreau para um tour pela Turquia (Vilas), Grécia e Bulgária. Foi também professora de Danças Circulares para a Melhor Idade no curso de Aprimoramento Profissional na Universidade Anhembi Morumbi, professora de Danças Circulares na Unidade Saúde Vila Olímpia da Prefeitura de SP e Co-autora do livro “Danças Circulares Sagradas - Uma Proposta de Educação e Cura”.)