sábado, 31 de maio de 2008

Midiotas. Ou me engana que eu gosto.

Gosto de cozinhar. E de comer. Não necessariamente nessa ordem. E - desculpe o lugar comum - minha mãe teve muito a ver com isso.

Quando criança eu acordava com o cheiro de pão quentinho subindo pelas escadas da casa assobradada onde morávamos no norte de Portugal. A primeira fornada ela tirava por volta das cinco da manhã, para alimentar não somente a nossa família, mas muitas outras na aldeia, que encomendavam.

O pão redondo de casca grossa e dura, e miolo macio, era apenas uma das iguarias irresistíveis para mim. Mas minha mãe também fazia alheiras, lingüiças, presunto, chouriços de todos os tipos e quase tudo que ia para a mesa da família e dos clientes da taberna que funcionava no salão térreo da nossa casa: a Taberna da Carolina. Sim, porque enquanto meu pai se dedicava a outras lides, entre elas semear, cultivar e colher os frutos da terra, ela cultivava os filhos, a casa, os clientes, os amigos, e transformava tudo em delícias. Ah, produzíamos vinho e azeite também.

Assim, desenvolvi desde cedo uma certa sensibilidade para apreciar sabores, aromas, texturas... Sem nenhuma pretensão de ser ou parecer um crítico gastronômico (arghhh!) sei dizer se um vinho é digno de ser tomado. Mas por favor, não me peça para explicar.

Tudo isso para dizer que não entendo como a mídia e alguns críticos conseguem endeusar pratos ou petiscos de qualidade duvidosa e transformar casas simplesmente medianas em verdadeiros locais de peregrinação. Pensando bem, eu entendo sim. O que não entendo é como a massa (a social) engole tudo sem questionar nada, acotovelando-se muitas vezes para pagar caro por algo que nem de graça deveria ser servido.

Quer uns exemplos?

A mídia não se cansa de repetir: o melhor pastel de bacalhau de São Paulo é o do Mercadão! Gente do céu, você já provou aquilo? Já sentiu aquela massa empapuçada, de bacalhau de segunda, desfiado, seco, sem um molhinho sequer, sem um temperinho pra facilitar a descida pela goela? E olha que além dele ter presença garantida na lista dos 10 melhores petiscos da cidade, já foi até elogiado pelos melhores chefs de cozinha que, claro, não entendem nada de pastel. Pra mim a única explicação plausível é que, cansados de comer suas finas iguarias, de vez em quando curtem uma junk food, só pode ser.

E o sanduíche de mortadela? Outro engodo que leva milhares de paulistas ao mercado central, fazendo fila pra engolir dezenas e dezenas de fatias de mortadela (boa mortadela, justiça seja feita) no meio de um indefeso pãozinho francês. Mas como, se o bom do sanduíche é fruto justamente daquele equilíbrio delicado entre o pão e o recheio? As duas vezes que comi pedi mais dois pãezinhos extras e ainda sobrou mortadela. Ora, faça-me o favor! Qualquer boa padaria, que faça um pão francês decente (muito mais difícil de achar do que uma boa mortadela, diga-se de passagem) faz um sanduíche exatamente igual, não tem segredo. Mas...não, igual “aquele” do Mercadão não existe. Saiu na Vejinha!

Engolimos absurdos também em alguns botecos “chic” da cidade, sem exercer o mínimo de autocrítica. Já pediu a picanha fatiada que você mesmo prepara em chapa quente sobre a sua mesa, respingando gordura pra todo lado? Ah, o lugar é superlegal, cheio de gente bonita... o único problema é que você sai de lá cheirando fumaça e tem de ir direto pro chuveiro tirar o óleo do cabelo. Começa que as mesinhas ficam a menos de meio metro uma da outra – tem de caber todo mundo! E se você não pediu picanha, azar o seu. Vai respirar picanha, vai engolir fumaça de picanha, vai ficar cheirando picanha da cabeça aos pés. Embora você e a mídia – saiu no Guia da Folha – não estejam nem aí.

Mais: você gosta de cachaça? Se gosta e degusta, deve saber que há excelentes cachaças no mercado, como a Claudionor, por exemplo, que não custam mais de 15 reais no varejo. Claro que outras, também muito boas, chegam a custar 40, 50 reais a garrafa. Pois bem, em muitas cachaçarias e botecos chiques a dose de todas elas pode valer 6, 7, às vezes até 8 reais. Tanto a que custa R$ 10 a garrafa, como a que custa R$ 40.

Já se esbaldou no balcão de acepipes do seu boteco preferido? Vai pagar por 100 gramas de beliscos – incluindo azeitona, champignon, salaminho, cebolinha, queijinho mussarela, umas lasquinhas de parmesão, presunto crú – algo em torno de 6 reais. Uma continha rápida de cabeça e você descobre que está pagando 60 reais por um quilo de tremoço, um quilo de cebolinha, um quilo de salame ou um quilo de azeitona.

Mas quem é que faz contas? O dono do boteco faz, sorte dele.

Veja (do verbo ver, não a revista): não estou dizendo que esses lugares não mereçam uma visita. Merecem várias. Estou dizendo, simplesmente, que não dá pra não ler... o cardápio, não dá pra não ver... os absurdos, e não dá pra não achar que, a nível de consumo, às vezes somos todos um pouco midiotas.

4 comentários:

Unknown disse...

Cascão, compartilhamos dos mesmos gostos: o pãozinho quentinho de manhã, o bom vinho, o sabor de tudo o que é feito com a qualidade do simples. E, ainda compartilhando, odeio lugares metidos a bestas, metidos a"meio-intelectuais-meio-de esquerda", metidos a "simplezinhos", a botequinhos, metidos a descoladinhos, metidos entre os dez mais da vejinha, enfim, metidinhos em geral. Ah, e que adoram meter a mão no meu bolso sem nenhum pudorzinho.
BJS Mara Barros

Carol Locci disse...

Só posso confirmar que se tem alguém que entende de comer, beber e anunciar, esse alguém é o tio Cascão. Portanto, leiam e não esqueçam de conferir antes de engolir, tanto as palavras quanto as delícias!

Anônimo disse...

Célio Pires
Cascão, meu amigo...naquele lugar que serve aquele pasteuzinho horrível de bacalhau...tem uma filial aqui em Campinas vc precisa experimentar então a FEIJOADA que coisa grotesca, feita com carnes frescas e o preço um absurdo.
Abraços Célio

Anônimo disse...

Cascão,
Como neto de portuguesa e namorado de portuguesa, sei bem o que é uma aldeia há uns 50 anos passados. São cheiros, sabores e sons que nunca mais se esquecem.
Concordo com você quanto ao endeusamento midiático, trata-se, no mais das vezes, de preguiça do jornalista que recebe os releases das assessorias de imprensa e uma vez por mês convite para almoçar ou jantar neste ou naquele restaurante.
É o suborno estomacal instituciolanizado.
Sei disso pois já fui responsável editorial por um caderno que tinha muito de "serviços". Também fui casado com jornalista, mas por princípios, nunca comemos de graça.
Por falar em cheiros, sabores, sons e comida, quero te convidar para comer duas das melhores feijoadas da Grande São Paulo. Uma, é em uma igreja alemã no Brooklin e a outra é num boteco na Rua Endres em Guarulhos. A de Guarulhos, se você não reservar, os operários que com seus uniformes azuis, frequentam o local não deixam sobrar nada.
As duas feijoadas não estão na mídia mas são imbatíveis.
Topa?
Abração,
Cacau